“ – Você precisa de algumas informações, alguns dos fatos básicos. Tenho Aids há cerca de três anos e não vou viver muito mais tempo. Basicamente é seguro estar perto de mim. A única maneira de contrair a doença é com troca de fluidos coroporais, de modo que vamos combinar agora que não teremos relações sexuais.
Emporia explodiu em gostosas gargalhadas, e logo Adrian se juntou a ela. Eles riram até ficar com lágrimas nos olhos, até a varanda sacudir, até estar rindo de estar rindo tanto. Alguns dos vizinhos apareceram e olharam para eles de longe. Quando afinal as coisas estavam sob controle, ela disse:
– Eu não faço sexo há tanto tempo, que esqueci que existe.”
John Grisham – “Caminhos da Lei”, conto Garoto Estranho
Esse livro do John Grisham eu comprei no ano que saiu, 2009. A proposta era um pouco diferente do que o autor vinha fazendo, já que vinha sendo acusado de estar se repetindo demais nos seus romances jurídicos.
A obra tem 07 contos independentes, com apenas um fato em comum, se passam no condado de Ford, local onde se passou o primeiro romance de Grisham – Tempo de Matar (ainda não li, mas está na lista).
Caminhos da Lei habita a minha mochila há mais ou menos 02 anos, saindo e voltando conforme o caso. É aquele livro que eu pego quando vou esperar uma consulta no médico ou quando vou fazer uma viagem demorada, algo do tipo. Como são contos, a leitura não ficava tão fragmentada.
Mas a enrolação foi demais e agora no final do ano resolvi ler os 3 contos finais. Valeu a pena, pois são os melhores.
Todos os contos lidam com histórias ligadas ao direito de alguma forma, também explora os costumes do interior do Missisipi, com variadas histórias curtas, mas contundentes.
O primeiro conto é “A Corrida de Sangue”, em que um grupo de amigos do interior vai à cidade grande doar sangue a um outro amigo, mas eles não dão conta da metrópole (a marvada pinga) e são engolidos por ela. O foco aqui é mostrar como os homens, jovens e pobres são o alvo do sistema criminal. Não é dos meus contos preferidos.
O segundo conto é “Em Busca de Raymond”. Esse já tem mais cara de John Grisham. Fala de um dos seus assuntos preferidos: pena de morte. O foco nesse conto, no entanto, não é o executado e sim a sua família, sobretudo sua mãe, que está ao lado do filho nesse momento e compartilha com ele as falsas ilusões de uma suspensão da sentença de última hora.
Depois é um conto também com cara do Grisham: “Os arquivos-peixe”, em que um advogado lida com a inércia de como vivia, dando um golpe e mudando de vida, indo embora. É mais uma das histórias em que o autor deixa claro que a advocacia pode e costuma ser bem maçante.
O próximo conto é “Cassino”, bem chato também. Mostra a história de um homem comum e pacato, que é largado pela mulher, cansada do marasmo. Isso faz com que ele tome uma atitude e use sua grande inteligência para contar cartas em cassinos pelo país e depois voltar rico e famoso, recuperando a mulher. Não vi muito propósito nesse conto.
“O Quarto de Michael” já vem com uma porrada bem forte na cara. Mostra um advogado pacato de vida simples sendo sequestrado e torturado física e psicologicamente por um homem. No desenrolar do conto esse homem revela que quer acertar contas com ele por um caso do passado, em que o advogado defendeu um médico pilantra acusado de erro, deixando uma criança de grave deficiência sem indenização e arruinando uma família.
Essa história já traz uma reflexão boa, pois o advogado dizia o tempo inteiro que “apenas fazia o seu trabalho”, o que para um pai naquela situação não significava nada, sobretudo porque esse pai afirma que o advogado usou de mentiras, golpes e tramoias para ganhar.
O direito tem dessas situações e o final desse conto é bem interessante para compreendermos como o próprio advogado se sente ao agir em casos assim.
Nos dois contos finais o autor preferiu se dedicar a grupos específicos e como lidam com eles nessas cidades.
“Quiet Haven” mostra a realidade de uma casa de repouso para idosos e um suposto enfermeiro golpista, que entende de direito, mas não é advogado. Esse homem se infiltra nos locais procurando formas de indicar processos por maus tratos a advogados e, com isso, ficar com uma comissão quando indenizações são pagas. A caça também é por heranças conseguidas ao ficar amigo de idosos abandonados pelas famílias.
Gosto do conto porque ele não vilaniza completamente o homem, que de uma certa forma se apega e até gosta dos idosos, trata deles melhor do que os funcionários verdadeiros. Além disso, paralelamente, corre uma história de prostitutas velhas, da decadência dessas mulheres, que ficam sem função e vivendo de passado.
O melhor conto de fato é “Garoto Estranho”, que ficou para o final, cuja passagem escolhida para epígrafe mostra o que tem de melhor no talento de um escritor.
Adrian é um rapaz homossexual de família rica na preconceituosa cidade do interior. Como lá não tem lugar para “gente como ele”, vai para a cidade grande, mas vive o boom do surgimento da Aids, ficando infectado e doente, voltando à sua terra natal para morrer, em 1984.
A família tem medo, nojo e vergonha dele, o mandando para o “lado negro” da cidade, para ser cuidado pela idosa Emporia, que finalmente teria sua casa para morar após a morte dele.
As nuances desse conto são várias, pois o preconceito se revela de várias formas, até mesmo dentro da igreja, local que deveria ser acolhedor. Não se conhecia sobre a Aids ainda e a violência que o homossexual já sofria aumentou por conta da doença.
A relação do homem, que tentou suportar a vida antes de morrer, com a empregada idosa, que viu nele a oportunidade de apenas ouvir sobre uma vida que foi verdadeiramente vivida, é o ponto alto desse conto e do livro. Aliás, isso faz Caminhos da Lei ser um dos melhores livros do John Grisham.
Muita gente criticou essa obra, dizendo que foi um apanhado de histórias fracas que não deram um livro inteiro e o autor juntou tudo na tentativa de fazer mais dinheiro sem esforço.
Como esse livro foi desenvolvido editorialmente pouco importa, aliás, nem sei se isso é verdade, já que Caminhos da Lei tem certa concatenação. O fato é que o talento do autor para escrever romances também é genuíno ao escrever contos.
Recomendo muito esse livro. Tenho certeza de que não vou esquecer de “O quarto de Michael” e “Garoto Estranho”.
FDL