“E ali, diferente de em sua cabine, ali ele não sente divisão entre mente e mão, nenhum erro de tradução ou estática na transmissão: as palavras que aparecem na página são aquelas que ele pretendia colocar, as imagens correspondem às cenas em sua mente, as sensações são exatamente aquelas que aquecem seu peito, arrepiam seu couro cabeludo, empurram os olhos.
O que o faz perder a noção do seu entorno? Será o prazer primevo da expressão? A dor de seus ferimentos? Os efeitos de simultaneamente verter sua vida para o papel e em uma poça carmim a seus pés? A euforia que vem com essas sensações de seu passado (o aroma doce e reconfortante do bolo de sua mãe no forno, o azedo das frutas vermelhas em sua língua, os toques de cardamomo e canela, a riqueza da manteiga; o rosto de seu pai, com os olhos pesados, nariz torto e sorriso sonolento; surtos de riso abafado de seus irmãos e irmãs aninhados para se proteger das correntes de ar gelado que correm pelo apartamento) rompe a represa que as continua e corre por sua mente, suas terminações nervosas, suas veias, seu coração? Talvez tudo isso. Algumas respostas são pouco.”
Doug Dorst, J.J. Abrams
O final de 2016 e começo de 2017 com certeza foi marcado por esse livro. Aliás eu me corrijo dizendo que S. é mais do que isso. É uma experiência literária e filosófica.
Vou primeiro colocar a sinopse oficial:
“Uma jovem encontra numa biblioteca um livro com anotações de um estranho. As margens repletas de observações revelam um leitor inebriado pela história e pelo misterioso autor da obra. Ela responde os comentários e devolve o livro, que o estranho volta a pegar. Ele é Eric, ela é Jennifer, e o inesperado diálogo dos dois os faz mergulhar no desconhecido. É esse velho exemplar típico de biblioteca - consultado, anotado, manuseado - intitulado "O Navio de Teseu", de V. M. Straka, que o leitor encontrará dentro da caixa preta e selada de "S.".
A lombada está visivelmente gasta e as páginas, amareladas, rabiscadas com comentários manuscritos em diversas cores. Entre as folhas, surpreendentemente, há cartas, cartões-postais, recortes de jornal, fotografias e até um mapa desenhado em um guardanapo. "O Navio de Teseu" data de 1949 e é o décimo nono e último romance de Straka, autor cuja vida é um mistério. Nem mesmo F. X. Caldeira, responsável pela tradução da obra e pela publicação do derradeiro livro, já após o desaparecimento e a suposta morte de Straka, tem mais informações.
Nas notas de rodapé, Caldeira tenta contextualizar e relacionar as obras e a vida do autor. Nas anotações a lápis e a caneta, porém, vê-se que Eric, um estudioso de Straka, parece não concordar com as notas da tradução. E as observações escritas por Jennifer, uma graduanda cheia de segredos que trabalha na biblioteca da universidade, mostram que ela percebeu isso. Da conversa entre Jennifer e Eric nas margens das páginas da obra emerge uma nova trama, que levará os dois a enfrentar decisões cruciais sobre quem são de verdade, quem talvez venham a se tornar e, ainda mais importante: quanto de suas paixões, mágoas e medos eles estariam dispostos a compartilhar com alguém que não conhecem.”
Ler o livro é um desafio. Você já começa tomando cuidado para não derrubar os diversos papéis avulsos anexados nele. Depois, você precisa se decidir se lê primeiro o livro e depois as anotações e anexos ou lê tudo de uma vez. Minha opção foi fazer separado. Pesquisei sobre isso e aparentemente não há um jeito certo de ler.
Aliás, meu modesto intelecto me exigiu pesquisar informações sobre S. após a conclusão da leitura, já que algumas arestas passaram despercebidas por mim.
O livro “O Navio de Teseu” conta a história de um homem desmemoriado que busca saber quem é e também luta por um propósito na vida além de sobreviver aos perigos que sofre constantemente.
A história é complicada de ler. É cheia de simbolismos e tem uma linha narrativa e temporal distinta, distorcida. Em boa parte da história o personagem S está dentro de um navio fazendo questionamentos e identificando observações que podem ter significados.
Esse título remete ao que se conhece como paradoxo do navio de Teseu. Resumidamente, vem da mitologia grega na história do homem chamado Teseu que derrotou o Minotauro e voltou para casa em um navio em uma viagem que levou anos. Várias partes deste navio foram sendo trocadas ao longo do tempo, levando à seguinte dúvida: com essas peças substituídas trata-se do mesmo navio ou é um navio novo? O que define essa identidade, as peças sobrepostas ou o significado que elas possuem ali?
Isso se reflete no livro em diversas partes, pois com novas experiências, S. já é outra pessoa ou é a mesma antes de perder a memória? Embora ele não soubesse quem era, sua essência seria a mesma se ele soubesse?
Nesse ponto preciso ressaltar que é uma obra do J.J. Abrams, mesmo que ele seja mais um autor mentor do que quem de fato escreveu a obra, que foi Doug Dorst. O que importa é o seguinte: J.J. Abrams é fascinado por mistérios, mas não é chegado em revela-los. Ele vive dizendo que as perguntas são mais importantes que as respostas.
Não fui um grande entusiasta de Lost, mas reconheci diversas qualidades dessa série. Realmente esse espírito de investigar aquilo que nos deixa curioso é muito viciante. E para isso a história contada deve ser boa e bem escrita, senão a curiosidade não aparece.
Após ler o livro principal, voltei às primeiras páginas e comecei a ler as anotações nas laterais do texto e os anexos entre as folhas. Para isso, é necessário reler vários trechos de O Navio de Teseu.
Aí o negócio pegou.
Os personagens Jen e Eric vão lendo a história, investigando o plano de fundo e nos dando informações “do mundo real”, além de narrar o que vão descobrindo.
Ele é um estudante da obra de Straka e se envolveu em problemas por conta de seu trabalho. Todos os estudiosos do autor lutam para descobrir a identidade dele, que aparentemente morreu há décadas.
A leitura desses diálogos é bem desafiadora. A ordem cronológica e lógica dos assuntos e acontecimentos é complicada de acompanhar. Sabemos que conforme as cores das canetas utilizadas por eles mudam, a cronologia muda também, significando que eles retornaram à página para adicionar novas palavras. Ainda assim, os assuntos são misturados.
Além disso, não sei se pela falta de espaço ou para sintetizar o assunto, diversos personagens são descritos com poucas informações, mas tão poucas que somos obrigados a decorar nomes ou escrever em um papel para não esquecer.
Mas com esforço a gente consegue seguir na história e junto com eles sabemos de descobertas acerca do possível nome verdadeiro do autor e sobre o que aconteceu, além de detalhes polêmicos sobre sua vida e de quem o cercou. Não bastando isso, temos a própria história de Jen e Eric, que compartilham suas histórias, seus problemas e acabam enfrentando tensões ao cavucarem uma trama que por muitos anos esteve oculta.
Tudo fez sentido? Para mim não. Algumas coisas ficaram no ar.
Como já disse antes, fiz algumas pesquisas na internet e depois reli algumas partes, percebendo que na riqueza de detalhes, alguns fragmentos não fixaram e eu precisava deles para a montagem da história, que fez muito mais sentido.
Não fosse só isso, acabei descobrindo que os autores e a editora lançaram diversos conteúdos pela internet, até criando sites, contas no Youtube e blogs com diversas informações adicionais sobre o livro.
Evidentemente é um livro que não acaba nunca, porque sinto que se relê-lo vou descobrir mais coisas, vou fazer novos questionamentos e compreender mais simbolismos.
Agora, como experiência de leitura não preciso falar nada, é excepcionalmente criativo e instigante, valendo a pena por si só. E quanto ao conteúdo?
Também tem qualidades. Observamos que O Navio de Teseu já retrata o questionamento da identidade e o significado dela, como um paralelo ao paradoxo que já comentei. Além disso, o livro tem correspectividades com a suposta história do autor, que lutou contra as injustiças do capitalismo, se levantando contra empresas que exploravam a mão-de-obra e a natureza de forma selvagem.
Algumas respostas ficam no ar, outras ficam na desconfiança, mas uma muito importante é dada. O que motiva todos os personagens a seguirem nessas viagens, seja nos barcos reais, seja nos figurados não é só a busca pelo autoconhecimento: é o amor.
S. ao final acaba sendo uma história de amor também, tanto entre os leitores quanto entre os personagens de O Navio de Teseu, quanto, por fim, na história descoberta de V.M. Straka.
O trecho que selecionei para epigrafar esse post é bem interessante para mim, porque é o escritor no mundo da fantasia, idealizando o sonho de todos que escrevem: a retratação por palavras de forma precisa do que se pensa e sente. Impossível, mas não no mundo da literatura.
Confesso que em alguns momentos a gente se entedia com o excesso de simbolismos, que chegam a romper a lógica do texto. Além disso, tem enrolação em algumas partes sim. Nada é perfeito.
Mas soube que essa história levou anos para ficar pronta, o acabamento físico desse livro é impressionantemente atencioso e uma obra como essa é impossível de ver por aí durante muito tempo.
Para mim, valeu como experiência de leitura, como novidade, como um convite a questionamentos e, como não, como história de amor.
Recomendo.
FDL