sábado, 30 de dezembro de 2017

Tieta do Agreste – Jorge Amado

“Tieta deixa a pergunta sem resposta, dirige-se ao quarto. Perpétua a observa de costas, andando, o passo firme, as ancas em meneio, indiferente à opinião dos demais, recorda-se do pai na força da idade. Cabrita louca, violento bode, os dois da mesma raça caprina e demoníaca, comprazendo-se em pasto de iniquidades.”

Jorge Amado

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Tinha que ter um livro brasileiro nesse ano e a última vez que li algo do Jorge Amado foi quando era adolescente, sem me impressionar muito. Como os tempos são outros e a novela reprisou nesse ano, Tieta do Agreste foi escolhido para encerrar as leituras de 2017.

Jorge Amado escreveu esse livro nos anos 70, em forma de folhetim. Ele já era bem consagrado e logo em seguida já houve disputas para adaptação de livro e novela. Foi uma obra aguardada e que gozou de seu prestígio quando ainda era fresca.

Na história, a pequena e miserável cidade de Santana do Agreste, nos “cafundós da Bahia”, não tem nada que a movimente, a não ser as fofocas que correm o dia inteiro. Mas a paz está prestes a mudar por dois motivos.

O primeiro deles é o retorno de Antonieta das Esteves, Tieta, que, vinte anos antes, foi escorraçada de lá a golpes de pau pelo próprio pai, por ter se deitado com um homem e ficado falada. Porém, Tieta agora é milionária, esqueceu as mágoas do passado e ajuda a todos da família de longe, sem dar muitas informações sobre sua vida. Com sua chegada, os interesseiros, verdadeiros amigos, xeretas e hipócritas vão cruzando o caminho da mulher, que para alguns é uma santa, para outros, uma quenga.

O outro acontecimento é a possível chegada de uma grande fábrica no Mangue Seco, uma praia paradisíaca e pouco habitada da região. O problema é que se trata de uma indústria altamente poluidora, que destruirá a parte linda da região, tal qual matas e peixes. A cidade se divide entre aqueles que querem o progresso a qualquer custo, cansados da pasmaceira e abandono do local. Por outro lado, há o que preferem manter Agreste vazia e pobre, a ter de vê-la destruída.

O romance é extremamente longo, com mais de 600 páginas que variam entre narrações sobre a história e digressões do próprio autor no exercício da metalinguagem. Em alguns momentos é bem cansativo.

Tudo isso acontece porque de fato Tieta existiu. Jorge Amado se inspirou em uma verdadeira cafetina que conheceu para compor o romance.

O destaque do livro certamente é o conjunto de coadjuvantes que formam uma Santana do Agreste que parece ser um personagem só.

Destaco a inteligente, solitária e intocada sarará Carmosina, melhor amiga de Tieta e funcionária dos Correios. Também a famosa, feiosa, materialista carola Perpétua. O moleque safado na puberdade Peto. O safado formado Osnar. A querida e bondosa quenga velha Zuleica Cinderela, enfim, vários tipos que são muito bons de acompanhar.

O livro, como não poderia deixar de ser, passa longe das hipocrisias e eufemismos. Sendo assim, a sexualidade é bem chula, algo esperado numa região assim. Segue a sabedoria popular:

“ – Tu vai ser padre, pois fique logo sabendo que padre sem catinga de mulher não presta. Como há de entender o povo se não sabe fazer menino? Andou um desses no arraial, de nome Abdias, não se deu com ninguém, as mulheres tinham medo dele, a igreja ficou vazia. Já no tempo do padre Felisberto, que viveu no Saco uns cinco anos, por causa do reumatismo, um padre direito com comadre e sete filhos, a devoção era grande, até nós, de Mangue Seco, vinha pra missa, para ouvir ele falar, cada sermão mais desenvolvido, contando como o céu é bonito, com música e festa todos os dias. Não era como o outro que, por desconhecer mulher, vivia no inferno, só sabia da maldade. Padre que não cheira a xibiu, cheira a cu, não presta.”

Muito bom observar também a habilidade e qualidade da escrita do Jorge Amado. A oralidade nos diálogos, sobretudo com as pessoas de diferentes origens e culturas é tão bem explorada no texto, que nos sentimos na situação acompanhando o que falam:

“... Pirica comenta a morte do velho, após dar a notícia:

– Indagorinha trouxe e levei ele no barco. Ia tão contente que até me deu um agrado.”

Coisa mais linda esse “Indagorinha”. É extrato de Brasil.

Há várias características interessantes nessa história. Sobretudo há um aspecto animalesco em Tieta quando ela resgata suas origens. De lá ela saiu um bicho sem instruções, para aprender reflexões, sentimentos e valores somente em outro local. Por isso, as descrições que envolvem Tieta e como ela vê os outros sempre envolvem animais, sobretudo os caprinos, que formaram a identidade sexual dela. Nisso eu destaco o trecho que escolhi de epígrafe nesse post.

No final, Tieta do Agreste foi uma agradável leitura, uma aula de cultura brasileira, que é tão rica e diversa. Às vezes podemos ter a tendência de achar que cultura é apenas o que a gente gosta. Ledo engano.

Agora, eu só li esse livro depois de ter visto a novela. Sim, vi uma novela em 2017.

Tieta – Tv Globo, (1989-1990)

tieta novela

Eu não tenho o hábito de ver novelas. Nem há preconceitos ou coisa do tipo. O problema é a duração, porque eu acredito ser impossível não enjoar no meio, ou em capítulos diários a história se manter viva e interessante.

A novela Tieta foi reprisada esse ano pelo canal Viva e minha mãe é assídua telespectadora do canal. Por isso, sempre passando alguma coisa, eu via algo aqui, algo lá e, quando percebi, me apaixonei por essa novela e acompanhava sempre.

Não posso dizer que vi todos os capítulos, seria uma grande mentira. Mas novela é assim, assistindo por amostragem você entende tudo. Claro que sempre tem uma mãe mal-humorada para responder as nossas perguntas no dia que vemos.

A novela é claramente inspirada no livro apenas. Embora quase na totalidade os personagens sejam os mesmos, haja inúmeras histórias aproveitadas, até mesmo diálogos, impossível uma novela ser idêntica a um livro. Mas não é que foi melhor?

A putaria é mais light que no livro, mas ainda assim é considerada uma das novelas mais sexuais da televisão brasileira, com nudez, insinuação de sexo anal, orgias, estupro, pedofilia, enfim, o negócio não foi leve.

Para romantizar a história, desenvolver alguns personagens, o que é necessário no formato de novela, há diversas mudanças e quando lemos o livro, entendemos as razões dela. Há um coronel mais presente e forte, mas é um pedófilo que compra meninas para ter seu harém. Há uma misteriosa mulher de branco que “abusa” sexualmente dos homens. Resultado? Vários deles vagam pela noite para serem “atacados” por ela.

A personagem Perpétua é bem mais vilã e guarda um mistério dentro de uma caixa branca. Insinua-se claramente que é o “dito-cujo do falecido”.

Entre outras situações, a novela Tieta é bem engraçada, com excelentes atuações de Joana Fomm, José Mayer, Paulo Betti, Armando Bógus, Miriam Pires, Lília Cabral, Bemvindo Sequeira e, óbvio, Betty Faria, que é a cara da Tieta. Não tem como ser outra.

Há muitas inclusões, com chantagens, mistérios, romances complexos, enfim, tudo aquilo que uma novela tem. Mas o tom de deboche e os termos nordestinos como “digue”, “calundu”, “desarvorado”, “xibiu” e outros, são de matar de rir.

Não posso deixar de dizer que quero muito um dia poder experimentar a frigideira de maturi.

A trilha sonora me acompanhou nesse final de ano para entrar no clima. Vai minha preferida:

Fica o registro de algo bem-humorado. Jamais iria ao ar na televisão de hoje, com tempos mais prudentes e respeitadores de direitos, mas que em vários momentos não deixa de ser puritano e hipócrita.

De todo modo, recomendo livro e novela Tieta para sempre! O filme não vi e não estou curioso. Quem sabe no futuro?

FDL

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