domingo, 30 de julho de 2017

O Segredo dos Corpos – Dr. Vincent Di Maio & Ron Franscell

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“Não faço necropsias em pessoas. Faço necropsias em cadáveres. Uma pessoa é algo vivo, vibrante e único. Cadáveres são apenas o que elas deixaram para trás”.

“Às vezes, não querem ouvir o que digo, e outras digo exatamente o que querem ouvir. Seja como for, não importa: eu sempre falo a verdade.

Não tomo partidos. O que eu sei é vital: como eu me sinto é irrelevante. Como patologista forense, tenho um compromisso com a verdade. Presume-se que eu seja imparcial e diga a verdade. Fatos por si só não têm qualidades morais; nós que atribuímos moralidade a eles”.

Dr. Vincent Di Maio & Ron Franscell

Esse livro foi lançado há pouco tempo pela editora Darkside, em uma coleção chamada Crime Scene, com obras que investigam e retratam crimes reais e todo esse cenário que gera muita curiosidade e que, até pelo assunto, gera muita desinformação.

Aproveitei minha onda de interesse por crimes reais reacendendo e li o livro, que por sinal, mais uma vez, tem uma arte gráfica extremamente bem feita e acabada. Tanto na capa dura cheia de detalhes, quanto no conteúdo, repleto de marcas.

Vincent Di Maio é um patologista forense muito respeitado nos EUA, com décadas de experiência. Nesse livro ele fala de sua biografia e de casos marcantes nos quais ele atuou. Vários deles são bem famosos, o que se torna um livro de true crime pelo ponto de vista médico legal.

Já adianto que há várias páginas em que ele fala sobre sua infância e suas raízes, além de experiências pessoais como estudante e sobre seu pai, cuja profissão seguiu. É bem desinteressante e maçante. Mas faz parte do todo, enfrentemos.

O autor vai dividindo seus relatos por capítulos e em cada um mostra como foram as experiências dele com os crimes em cada caso e como contribuiu na solução dos fatos, muitas vezes extremamente equivocados.

O primeiro caso que ele relata envolve o segurança George Zimmerman e o jovem negro Trayvon Martin. Em uma situação de confronto, o primeiro atirou no segundo, o matando. É um caso com provas circunstanciais e muitas acusações de crime racial, com manifestações até do presidente da república.

O autor conta que com sua análise balística, levando em consideração dados sobre tiros de contato e marcas sobre roupas, a posição dos envolvidos no momento do disparo era diferente do imaginado, revelando uma legítima defesa e afastando as impressões anteriores.

Esse primeiro caso já mostra a resistência que o autor tem a grupos de pressão que utilizam a mídia. Ele é extremamente crítico a isso, até conservador em alguns pontos, porque se utiliza da ciência como método de obtenção da verdade, que pode ser encoberta pela exposição de versões não comprovadas.

É no segundo capítulo que o autor divaga sobre sua vida pessoal e explica o sistema da patologia forense americana, tecendo várias críticas. Como já mencionei, é bem desinteressante.

Em seguida, ele retrata um caso que chama bem mais a nossa atenção: Martha Woods.

Trata-se de uma mãe que leva os filhos ao hospital e eles estão cianóticos e sufocantes e as crianças acabam morrendo. Utiliza-se como causa a morte súbita infantil, o que o autor crítica, pois é atestar não se descobrir o que matou a pessoa.

Mas um médico investiga a vida da mãe e descobre um passado cheio de abortos e mortes suspeitas de crianças, levantando a suspeita que é confirmada após a perícia, que atestou o sufocamento das crianças causadas pela mãe, que era, na verdade, uma serial killer.

Martha foi condenada e morreu na cadeia. Não havia nessa época conhecimentos sobre a Síndrome de Münchhausen por transferência.

No quarto capítulo é contada mais uma história que teve a mídia interferindo: dois homens explodiram dentro de um carro, havendo dificuldade de identificação.

Eram, na verdade, dois ativistas radicais do movimento negro, que carregavam uma bomba para possivelmente cometer um atentado em um fórum, nos anos 70.

A causa da explosão não foi descoberta, mas toda a disputa de acusações entre os movimentos teve a verdade mostrada apenas com a perícia. Ressalto nesse capítulo a grande resistência do autor a movimentos negros e comunistas. Não acho que tinha de defender, mas se ele explicitou sua imparcialidade quanto aos fatos, por utilizar a ciência forense para a obtenção da verdade, também deveria isentar-se politicamente.

O caso seguinte é sobre Lee Harvey Oswald, o assassino do presidente John Fitzgerald Kennedy.

Houve muita discussão, no auge da guerra fria, sobre conspirações que escondiam a verdadeira identidade do assassino, havendo uma fraude na identificação do morto, sepultando um substituto para enganar o povo.

Para isso, o autor conta ter participado de uma exumação para se certificar completamente do trabalho feito, assegurando que as teorias conspiratórias não passavam de delírios de paranoicos políticos.

Ressalto que esse capítulo tem descrições absolutamente nojentas e grotescas a respeito do estado do corpo, do trabalho de necropsia e até mesmo da exumação. Tem que ter estômago forte nesse aí.

No caso seguinte, no 6º capítulo, o autor conta a história da enfermeira Genene Jones, uma mulher realmente bizarra.

Tal qual no caso de Martha Woods, crianças morriam misteriosamente sob seus cuidados, passando-se anos sem que houvesse suspeitas. Mas após investigações e perícias, descobriu-se que a enfermeira envenenava as crianças com uma droga paralisante indetectável na época, causando mortes realmente dolorosas e sem rastros.

Nesse capítulo há uma discussão mais aprofundada sobre as críticas do autor ao diagnóstico por SMS (síndrome da morte súbita).

Há no final uma crítica que chama bem a atenção quanto à diferença do sistema criminal americano com o brasileiro: o autor menciona o fato de que Genene pode sair da cadeia em 2018, sendo a primeira serial killer americana posta em liberdade, acusando uma falha do sistema.

Em seguida, o autor conta casos mais rápidos. O primeiro é do imigrante ilegal Martin Frias, que morava em um trailer com a mulher e a encontrou morta com um tiro de rifle. Foi acusado e condenado pelo homicídio e somente após a perícia foi constatado o suicídio da mulher, que tinha histórico de depressão.

Além desse caso, ele fala sobre o caso de um coronel, que foi encontrado enforcado, deixando um bilhete com suspeitas de perseguição. Houve suspeitas de terrorismo e um clima de tensão no país. Ocorre que a perícia atestou um suicídio, descoberto depois que fora motivado para obtenção de um seguro de vida, já que a família passava por dificuldades financeiras.

Nesse capítulo selecionei um trecho que me fez pensar, porque a família do homem jamais aceitou a hipótese do suicídio, ainda que com robustas provas forenses deixando isso evidente.

Com relação a isso, o autor escreveu:

“Não tenho como saber o verdadeiro motivo dessas mortes. Está além da minha compreensão. Temos ferramentas fantásticas que nos permitem analisar vestígios microscópicos de fatos consumados, mas não há ciência capaz de detectar resquícios de medos, pesadelos, e demônios internos que os causaram. O coração humano não é um disco rígido que podemos dissecar para perscrutar os segredos que encerram cada tecla pressionada ao longo de uma vida. Tenho certeza de que as famílias do General Ownby e do coronel Shue gostariam de saber ainda mais do que eu.

Corações se partem, ainda que não deixem vestígios.

Morrer é, às vezes, mais fácil do que viver com a morte.”

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O último caso desse capítulo é o de Kevin Hunt, homem negro acusado de matar o enteado de 02 anos. Em um caso cheio de preconceitos e racismo, o erro foi descoberto somente após a verificação de equívoco crasso em necropsia: o menino tinha falecido de morte natural e os ferimentos não eram de agressão, mas sim de tentativa de reanimação.

Houve perseguição implacável da promotoria nesse caso e Kevin acabou aceitando um acordo de admissão de culpa num segundo julgamento, para não correr o risco de ser condenado a uma prisão perpétua em um sistema que esteve contra ele o tempo todo.

O autor lamenta que a medicina forense não possa ter ajudado nesse caso a trazer justiça e mostrar a verdade sem sombra de dúvidas.

Os casos finais mostram os trabalhos mais famosos de Di Maio.

O primeiro dele envolve a sua participação no caso de Phil Spector, cujo julgamento chamou a atenção do mundo todo.

Phil Spector é um grande produtor musical americano, trabalhando com vários nomes, inclusive os Beatles (produziu Let it Be). Mas quando ficou mais velho e passou a ficar esquecido, sua vaidade sofreu com isso, já que sua fama é tudo que tinha.

Spector levou uma garçonete e atriz fracassada para sua casa e ela é encontrada com um tiro na boca. Ele é acusado de mata-la, mas ele diz que ela se matou em um jogo sexual, já que tinha histórico de depressão.

Di Maio é contratado como perito da defesa e discorre sobre a visão de que profissionais gabaritados são contratados a peso de ouro em julgamentos assim, ficando com fama de mercenários.

O caso envolveu advogados e peritos de outros julgamentos famosos, como O.J. Simpson e Menendez, mas o excêntrico milionário foi condenado em seu segundo júri, conseguindo ainda escapar do primeiro.

Com isso, lembrei que houve um filme sobre esse caso que eu não tinha visto. Acabei vendo no mesmo dia e falarei sobre ele depois.

O caso seguinte é bem famoso também, conhecido como West Memphis, ou Devil’s Knot, enfim, aquele em que três meninos foram brutalmente assassinados e torturados em uma pequena cidade interiorana nos EUA.

A questão nesse crime é a de que três adolescentes foram presos e condenados, mas com base em boatos, superstições e teimosia da investigação, sem provas reais.

O autor do livro é convidado pelo advogado a analisar as provas forenses obtidas e encontra tudo errado: inchaços que foram base para conclusão de estupro não passavam de reações normais de corpos submersos, lesões atribuídas aos supostos autores foram causadas por animais, enfim, vários erros.

Por isso, em um twist carpado jurídico, o caso foi reaberto e os condenados libertados, mas sem reconhecimento de erro por parte das autoridades policiais e judiciais.

Di Maio ressalta que não sabe a verdade até hoje e podem sim ter sido os condenados quem cometeram o crime. Mas provas para isso não houve. Se a investigação não fosse tão contaminada, talvez tivessem obtido elementos robustos para uma versão próxima da verdade.

Quanto a esse caso, há diversos documentários, filmes, livros. Até comentei aqui já o “Sem Evidências”, há alguns anos.

É um crime perturbador, pela violência e pela ignorância que todos ficam com relação à verdade, que nunca foi nem será descoberta.

O caso final diz respeito à reanálise da causa mortis do famoso gênio pintor perturbado Vincent Van Gogh, cujo falecimento era cheio de dúvidas, que foram elucidadas após um trabalho forense.

No fim, o livro que parece curto é bem cheio de dados, informações e histórias, porque é contado por um objetivo cientista, sem enrolações.

Recomendo muito, porque abre nossa mente sobre um trabalho que é desconhecido por muitos ou romantizado pelos filmes e seriados, mas envolve muito estudo, dedicação, riscos, desconfortos e uma procura incansável pela verdade.

Valeu muito a pena essa leitura.

FDL

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