“Pediu a todos que fechassem os olhos e ouvissem o que ela ia dizer. Pediu-lhes que imaginassem que a menina tinha cabelos louros e olhos azuis, que os dois violadores eram negros, que eles tinham amarrado o pé esquerdo dela numa cerca e o direito numa árvore. Que a violaram repetidamente e a insultaram porque ela era branca. Pediu-lhes que imaginassem a garotinha ali deitada, chamando pelo pai, enquanto eles lhe davam pontapés na boca, quebrando-lhe os dentes, quebrando -lhe os maxilares, o nariz. Disse-lhes que imaginassem dois negros bêbados entornando cerveja em cima dela e urinando no seu rosto e rindo como, anormais. E depois acabou por lhes dizer que imaginassem que a garotinha lhes pertencia, que era sua filha. Recomendou-lhes que fossem honestos com eles mesmos e que escrevessem em um papel se matavam ou não aqueles negros miseráveis se pudessem. E eles votaram, voto secreto. Os doze, todos, disseram que cometeriam o assassinato. O primeiro jurado contou os votos. Doze a zero. Wanda disse-lhes que estava disposta a ficar sentada naquela sala até ao Natal, mas que nunca votaria pela condenação, e se todos fossem honestos consigo próprios, pensariam da mesma maneira. Dez concordaram com ela e houve uma mulher que se opôs. Todos desataram a gritar e a censurá-la com palavras tão duras que ela, por fim, acabou por ceder.”
John Grisham
Acabei demorando para ler esse livro completamente. Como desculpa uso o fato de ser bem longo.
Trata-se do romance de estreia do escritor John Grisham, o que o lançou ao estrelato e à façanha de lançar um best seller por ano.
Talvez tenha sido o livro mais contundente que eu li desse autor. “O Recurso” também é, só que mais pelo pessimismo. Tempo de Matar impressiona pelo retrato cru de uma realidade que fingimos não ver.
Apesar de haver um plano de fundo envolvendo julgamento, assassinato, estupro, pena de morte, justiceiros e a advocacia, esse livro trata de forma incisiva mesmo o racismo. Este crime permeia todas as relações desse livro, até as mais banais.
Peguei a sinopse no Skoob:
“Dois homens brancos espancam e violentam impiedosamente uma menina negra de dez anos, numa pequena cidade ao sul dos Estados Unidos. A população da cidade - Clanton, no Mississipi -, apesar da significativa maioria branca, reage com choque e horror ao crime desumano. Mas o drama da menina Tonya e de sua família não pára por aí. Ele ganha dimensão nacional a partir do momento em que o pai da menina consegue um fuzil emprestado, relembra seus tempos no Vietnã e mata os estupradores. A opinião pública se divide e o jovem advogado, Jake Brigance, que assume a defesa, terá que enfrentar toda sorte de perseguições, principalmente por parte da violenta Ku Klux Klan.”
O personagem de Jake Brigance é interessante, porque não esconde utilizar o julgamento para alavancar sua carreira. Além disso, é cercado de pessoas que andam no limite da falta de ética profissional, se aproveitando dos benefícios de desonestidade sem, de fato, meter a mão na sujeira.
Escolhi esse trecho específico do livro para epigrafar esse post porque revela o cerne do assunto tratado por Grisham. Será que negros e brancos são julgados da mesma forma? E será que deveriam?
O meio do livro é excessivamente enfadonho, se perdendo em diálogos repetitivos e pormenores que não acrescentaram em nada. Nos livros seguintes Grisham foi mais dinâmico.
Por outro lado, a passagem do julgamento é de arrepiar, sobretudo com o texto tão lúcido e inteligente.
Claro que é uma trama rocambolesca, cheia de emoções que fogem da realidade. Mas pra isso serve a ficção e a fantasia, que, nesse caso, ainda trouxe um belo de um debate para as nossas consciências.
Acabei lendo esse livro por passa-lo na frente de outros, mas o motivo é justificável: em 2014 (comprei no natal agora) Grisham lançou “A Herança”, que se trata de uma continuação de “Tempo de Matar”, mais de 20 anos depois. Tudo isso me fez ter que ler esse livro logo. Não me arrependi.
Claro que como todo bom livro dele temos o seu respectivo filme. Eis:
Filme: Tempo de Matar (A Time to Kill)
Nota: 9
Elenco: Matthew McConaughey, Sandra Bullock, Samuel L. Jackson, Kevin Spacey, Oliver Platt, Donald Sutherland, Kiefer Sutherland, Ashley Judd e como sou muito atento, vi Octavia Spencer como uma enfermeira sem fala que apareceu rapidinho.
Ano: 1996
Direção: Joel Schumacher
Joel Schumacher já tinha dirigido outro filme baseado em livro do Grisham: O Cliente.
Quando eu vejo esse elenco, sobretudo que tem participação do Kevin Spacey, me revolto por não ter lido/assistido antes. O que importa é que a hora chegou.
Dificilmente vemos isso, mas para um livro excelente, o filme excelente. Ótimos atores, escalados como eu imaginei os personagens.
A cena de enfrentamento entre a comunidade negra e a KKK na frente do tribunal ficou excelente, de arrepiar.
Mudança que não gostei: algumas interferências do personagem Carl Lee foram diferentes do livro e achei desnecessário. Deixou o advogado em situação de incompetência e transformou o réu em herói. Prefiro a quebra de maniqueísmo do Grisham, que fez o personagem vacilar em vários momentos. A cena do policial que perdoa Carl Lee foi estragada por esse pitaco. Não gostei disso.
Mudança que gostei: o trecho que epigrafei o post, no livro é mencionado sobre uma fala de uma das juradas nas deliberações. Ela diz isso aos outros jurados enquanto debatiam. O filme supriu uma falha do livro, que suprimiu a alegação final de Jake, dando um pulo no tempo até o final do julgamento. Para isso, de forma inteligente essa fala que inverte o perfil racial de vítimas e réus no processo foi dita por Jake, em uma cena muito bem feita, a qual aplaudo de pé a atuação de Matthew McConaughey.
Posso ser bem ranzinza e dizer que se no livro cortam o cabelo de Ellen Roark, por que não fizeram o mesmo com Sandra Bullock? Deixa pra lá.
De todo modo, recomendo filme, livro, tudo.
FDL