quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Clarice Lispector – Todos os Contos. Parte 01: Primeiras Histórias

Clarice Lispector – Todos os Contos 1Estava pensando em fazer algo diferente com a minha rotina de leituras e esse livro foi a opção mais adequada. Estava com saudades de ler algo de Clarice e não tenho o hábito de ler contos. Por isso, enquanto tiver tempo, vou ler esse livro bem aos poucos. Como ele é uma junção de contos que já eram agrupados em diferentes livros, fica fácil fazer uma divisão.

O trabalho de contos de Clarice é tão respeitado quanto o de romances e eu sempre tive vontade de conhecer, porque até hoje eu só li os romances A Hora da Estrela e Água Viva. Já os li há muitos anos e mesmo assim muito me marcam e me impressiono com quantas coisas ainda ficaram na minha memória. Isso é identificação com o que se lê. Quanto mais descartável a leitura, menos ela dura.

A primeira parte foi uma reunião de contos escritos na juventude da autora. O título ficou Primeiras Histórias, com 10 contos.

O Triunfo

O primeiro conto é bem curto e tem a protagonista Luísa, que acaba de ser abandonada pelo companheiro e está no momento de choque em se adaptar à nova realidade, enquanto digere o que tem acontecido.

As lembranças de Luísa claramente mostram a vivência de um relacionamento abusivo, no qual não era respeitada e o curto conto mostra uma conclusão final dela: ele voltaria para casa.

Fica a sensação de não sabermos se ela realmente conclui isso, a despeito de tudo indicar o contrário, ou é apenas uma forma que encontrou de pensar para evitar o sofrimento.

Posso interpretar também que ela quando se vê sozinha e percebe as falhas do marido, entende que ela é superior a ele, não o contrário, como tanto pensava. Logo, ele que precisava dela, não o oposto.

A intensidade da escrita e o significado em cada linha já mostram que ler Clarice é para ser devagar mesmo, porque há um simbolismo em tudo que ela escreve.

Só agora percebo como sentia falta dessa leitura.

Obsessão

Esse já é um conto mais longo e denso.

A narradora é uma mulher infeliz na apatia de seu casamento com Jaime e sua vida que apenas seguia o que tinha que seguir, sem questionamentos.

Ocorre o momento de ruptura quando ela conhece Daniel, que é justamente o oposto daquilo que ela conhecia, pois é um homem que questiona tudo, enxerga na vida um grande sofrimento e ultrapassa a vida básica em busca de algo que transcende.

Isso faz com que ela se apaixone por Daniel e também sucumba, porque ele vê nela essa insignificância, a chamando de burra e inocente o tempo todo.

A despeito de ser agredida, ela se apaixona cada vez mais por esse homem que a faz questionar a sua vida anterior infeliz, ainda que na nova não encontre essa felicidade. Parece que ela quer sentir, algo que não fazia isso, ainda que fossem sensações de dor.

Nesse momento, Daniel encarna um tipo de professor e diz que irá educa-la sobre esses conhecimentos de consciência sobre a existência. Ela larga o marido e Daniel diz seu nome, Cristina.

Fico com a sensação que somente sabemos o nome dela nesse momento porque antes ela era anônima, não existia, era apenas um corpo seguindo a vida.

O final do conto mostra que conforme ela descobre a existência, descobre também que Daniel não é um Deus, possui fraquezas como qualquer um.

Assim, Cristina entende que conhecimento é solidão, voltando para seu marido.

Esse conto é complexo e ler Clarice sempre dá a impressão de que algo não foi percebido ou entendido. Mas algo tão profundo só pode atingir cada leitor de uma forma, não há outro jeito.

Apesar de se alongar muito, vejo nesse conto alguns recursos que já conhecia na escrita dela: a busca do protagonista por um sentido na existência, a saída do marasmo ao se chocar com a consciência, a revelação tardia do nome da protagonista quando ela sai da apatia e o final aberto.

Excelente conto.

O delírio

Esse já é um conto mais difícil. Somente relendo para compreender algo. Ou achar que compreendeu. É bem curtinho.

A pouca narrativa mostra um homem doente, em meio a delírios causados pela enfermidade. Ele é escritor.

Por meio de diversos simbolismos, como a luz que entra pela janela, a terra murcha e a renovação das espécies, percebe-se que cada vez mais o escritor está ligado a uma existência metafísica, perdendo o contato com a realidade.

Isso se mostra ao não compreender algumas situações à sua volta, fazendo com que sua enfermeira entenda que o fim dele está próximo.

O mais interessante é que ele somente sente paz com seu delírio quando pega papel e lápis e o coloca em letras. É temática da Clarice essa união entre o escritor e o sentido que ele mesmo se dá somente ao escrever.

Quantos simbolismos posso ter perdido? Muitos, mas somente relendo várias vezes para compreender ou viajar cada vez mais. Será que para compreender esse conto o próprio delírio deve ser nosso?

Essa leitura de contos abre demais a cabeça.

Eu e Jimmy

Conto de pouquíssimas páginas, mas bem interessante. Um dos melhores até agora.

Vejo um lado irônico na autora, que traz uma escrita com clara postura feminista.

A protagonista é uma estudante de direito e começa a se relacionar com Jimmy. Mas ela segue o que sua mãe fez, tendo pensamentos próprios, mas os suprimindo para seguir uma doutrinação masculina.

Jimmy ensina-lhe sobre seu pensamento natural, ou seja, se duas pessoas se gostarem, devem se amar, tal qual animais, e qualquer outra coisa é bobagem.

Assim a protagonista segue, até conhecer seu examinador no curso, a quem chama de D., que lhe ensina novas teorias e pensamentos novos. Isso faz com que ela deixe de admirar Jimmy, que era muito mais raso.

Aí vem a ironia, para terminar com Jimmy ela aplica a ele a própria teoria. Mas ele não gosta nem um pouco e a ofende, fazendo com que ela fique confusa.

Nessa hora vem o ponto alto: ela consulta sua avó sobre o conflito, obtendo a sábia resposta de que homens criam teorias para eles, mas para as mulheres são diferentes.

Assim, a estudante compreende que se é assim, de fato somos animais. Porém Jimmy apesar de falar, não compreende isso.

É interessante a passagem curta que mostra o descobrir de uma mulher sobre questões que a inferiorizam em um tempo que ela está começando a ter acesso ao conhecimento.

História Interrompida

O conto mostra mais uma protagonista sem nome. Esta tem um relacionamento com W e se sente inquieta em tentar compreendê-lo. Ele é uma pessoa triste, que a deixa confusa. O problema é que quanto mais tenta fazê-lo superar esse estado, pior se sente, pois ele acha que ela não tem capacidade de entender.

Deste modo, ela conclui que ou ela o destrói, ou ele a destrói. Em uma espécie de vingança, ela decide que irá pedi-lo em casamento, talvez como forma de “ganhar” a briga, fazendo com que ele fique feliz.

Para isso, planeja como pedir, como se vestir, para que tudo seja perfeito. Se perde em expectativas. Até se sente culpada pela felicidade.

Em sua visão até infantil, ela ignora os verdadeiros motivos da tristeza dele. Ela o quer contente para que ela fique contente também.

Todavia, vem a ruptura: no dia em que pediria W em casamento descobre que ele se matou.

Após uma passagem ela se questiona, porque no futuro se casou e teve filhos, mas continua sem compreender o sentido de W e de seu sofrimento por ele. As explicações de Deus não a satisfazem.

Interessante compreender a passagem de Ló que ela cita: aquela que olha para trás e se transforma em sal. Ela tenta não fazer isso, mas não consegue, porque não entende o sentido do suicídio.

É um conto mais complexo e confuso, porque confesso não entender como a autora se vingaria casando. Mas ainda assim mostra a relação de expectativa e frustração como forma de evolução para o ser humano.

A Fuga

Esse conto tem umas 05 páginas, mas é um tapa na cara.

Temos uma protagonista mulher novamente, sem nome novamente e nesse caso certamente ela não tem nome porque representa todas as mulheres.

Ela é casada há 12 anos e tem uma grande descoberta, uma revelação, um rompante de coragem. Resolve fugir de casa. Nos primeiros parágrafos ela saboreia as primeiras horas de liberdade, na chuva.

Após isso, aparece uma alegoria, da pessoa que não é atingida pela gravidade, vive caindo, mas nunca chega a lugar algum. Ela se sente afundando no mar, sem nunca chegar ao fundo.

Ela de repente sente de novo a mesma sensação de sufocamento que sentia no casamento. Começa a pensar que talvez o dinheiro que tinha não desse para o navio, que tomou chuva e estava com frio. Parecem desculpas para desistir da fuga, ou a sensação de que uma mulher casada naquela época não tinha a opção de seguir sua própria vida.

Ao final, volta para casa e o marido nem nota que ela demorou, já lhe trazendo compromissos caseiros. Ele dorme e ela chora no seu canto.

Percebemos que o título da fuga não é do marido, mas dela mesma, porque é anulada, não tem como ter a liberdade que sonha nesse mundo.

Clarice reflete muito sobre o papel da mulher, sobretudo na instituição família. Ela é apenas um papel social, não tem individualidade.

Talvez um dos meus contos preferidos até agora.

Trecho

Clarice apresenta Flora, uma mulher que espera seu namorado/amante/rolo, Cristiano, em um restaurante.

Ela se sente insegura por estar sozinha e acha que todos a julgam por isso, ou, pior, não a notam, como se não existisse.

Ela o espera ansiosamente, mesmo com o atraso, porque ele lhe prometeu que seria um grande dia.

O conto vai mostrando uma linha de pensamentos de Flora, que tem uma filha, a quem chama de Nenê. Flora também parece ser jovem e vive sendo avisada que seu maior medo pode ser realidade: será abandonada com uma filha.

Em um momento, quando já crê que Cristiano não virá, Flora se olha no espelho e não se reconhece. Sente que sem ele, ela não existe. Mais uma vez Clarice mostra como as mulheres da época se sentiam incompletas sem um homem ao lado.

De repente, Cristiano chega. Ela sente raiva por ele demorar tanto, a fazer não existir naquela restaurante por tanto tempo. Ele dá uma desculpa esfarrapada e começa a lhe tratar com paternalismo.

Ela esquece. Fica feliz, porque agora existe.

Cartas a Hermengardo

Este conto me pareceu ser o mais difícil de compreender o sentido, por conta da linguagem da autora e das metáforas e referências que para mim nem sempre ficaram tão claras.

São 05 cartas escritas por Idalina a José, a quem prefere chamar de Hermengardo. Ela não pretende enviá-las e não o conhece pessoalmente. Ela apenas o vê da sacada de seu prédio fumando na sacada dele.

A impressão é a de que como ela sabe que a carta não será lida por ele, ela pode expressar todas as angústias e reflexões que o convívio social a impedem de fazer.

Na primeira carta, Idalina sente-se culpada, por ter tudo e não ser feliz, estar insatisfeita. Diz parece pouco der pão e cama. Obviamente se nota que lhe falta companhia.

Idalina tem emprego, cita chegar em casa de uma repartição e também um professor de direito público. Mas é sozinha e até cita o termo “spleen”, muito utilizado na literatura, que nada mais é o sofrimento pelo vazio existencial.

Nas cartas seguintes, Idalina mostra suas reflexões antes ocultas. Como uma espécie de resignação, afirma que amar é sofrer. Lamenta essa constatação, mas faz um estranho paralelo entre pensar em ouvir uma música e efetivamente ouvi-la. Segundo ela, assim que ouve a música, ela se acaba e o significado que tinha em seu pensamento também se vai.

Por isso, Idalina diz que só ama quem não coloca o amor em prática, porque é como coloca-lo para fora de si e a experiência destrói o amor.

Ela ainda faz reflexões sobre paixão e deixa Hermengardo com um conselho sobre amar, mesmo sabendo que ele não lerá suas cartas.

Conto muito difícil e tenho certeza que precisarei reler no futuro para quem sabe retirar algo mais dele.

Gertrudes Pede Um Conselho

Clarice mostra nesse conto sua grande habilidade com a escrita, sobretudo nas questões dos pensamentos e sentimentos de seus personagens. Esse conto, como tantos outros, é quase inteiro escrito em discurso indireto livre, com poucos diálogos explícitos.

Essa característica deixa um ar soberano ao narrador na interpretação do personagem, mas com uma linguagem dessas sensações.

Gertrudes, Tuda, é uma jovem de 17 anos, muito inquieta, que escreve diversas cartas para a “doutora”. Não fica claro qual a atuação dela, ficando no ar a suspeita de que seja uma advogada.

Talvez pela insistência das cartas com um pedido de emprego, a doutora chama Tuda para uma entrevista.

No caminho, Tuda reflete sobre sua perturbação, as ideias de suicídio e, seguindo o tema do conto anterior, a sensação de culpa que sentia por sentir-se incompleta, já que tinha tudo. Em um momento diz que não suporta a felicidade que tem, mesmo sem saber que felicidade é essa.

Claro que Tuda cria expectativas de como seria essa mulher que idealizava e teria como mentora, direcionando lhe pelo caminho que precisava seguir e não sabia como era.

O problema é que quando chega à entrevista, Tuda se decepciona, pois a doutora não é como imaginava e demonstra vários sinais de que também é uma humana com conflitos e incertezas.

Tuda, com isso, tem vontade de fugir, pois constata que a doutora é igual a todo mundo, incapaz de compreende-la.

Após conversarem e perceber o desinteresse da doutora, quando está indo embora, ouve da mulher para que vivesse a vida, deixasse o sentido dela aparecer naturalmente, como acontece com todos. Diz-lhe também que ela é uma garota sensível, por isso, sente tanto mais infelicidade quanto felicidade que os outros, mas não deveria antecipar, porque o sentido da vida aconteceria.

No entanto, a falta de sinceridade da mentora é percebida pela suposta pupila, que se sente agora superior à doutora, que desistiu do sentido da vida, mas ela não, era corajosa.

Tuda ainda sente uma fagulha de admiração pela doutora quando essa pede para que ela retorne com uns 20 anos para trabalhar com ela, quando for mais experiente.

A epifania de Tuda chega no caminho de casa, quando lembra da mão mole que a doutora estendeu-lhe na despedida: foi indesejada. Mas mesmo assim está mudada. Percebe que não precisa de sua mãe lhe dizendo o que fazer, nem da doutora para ser mentora. Era capaz de tomar suas decisões sozinha.

Arrebata da seguinte forma:

“Lembrou-se subitamente: a doutora... Não... Não. Nem aos vinte anos. Aos vinte anos seria uma mulher caminhando sobre a planície desconhecida... Uma mulher! O poder oculto desta palavra. Porque afinal, pensou, ela... ela existia! Acompanhou o pensamento a sensação de que tinha um corpo seu, o corpo que o homem olhara, uma alma sua, a alma que a doutora tocara. Apertou os lábios com firmeza, cheia de súbita violência:

- Eu lá preciso de doutora! Lá preciso de ninguém!

Continuou a andar, apressada, palpitante, feroz de alegria.”

Mais dois Bêbados

O conto final de Primeiras Histórias é bem diferente dos outros. Mas ainda segue como assunto o conflito interno sobre o significado da vida.

Um homem bêbado, noivo, cansado da falta de compreensão de sua noiva, Ema, perambula pela rua em busca de outro bêbado para começar a conversar.

Ele encontra outro homem, que deixou esposa e filho doente em casa para beber. Mas o outro manguaceiro não parece ter interesse nessas reflexões que o primeiro faz e que parece beber apenas para atingir esse grau de consciência.

Irritado, o primeiro homem começa a contar uma história bizarra e perturbadora a respeito da esposa e do filho do segundo, de modo a faze-lo ouvir, demonstrar emoções e e sentimentos.

Mesmo assim, parece que não há resultado, até que o outro bêbado diz que vai falar uma coisa e... o conto acaba.

É irônico, pois no meu entender foi a autora dizendo que nunca sabemos que o outro pensa quando tentamos enfiar pensamentos na cabeça dos outros.

...

Assim termina esse primeiro livro de contos da Clarice Lispector. O próximo é Laços de Família, um dos mais famosos da autora. Em breve faço comentários sobre ele.

FDL

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